Quem imagina a arqueologia apenas como escavação em terra firme, com pincel na mão e tumbas milenares, ainda não conhece o trabalho dos arqueólogos da Marinha do Brasil (MB). Desde 2015, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM) mantém uma Divisão de Arqueologia Subaquática, responsável pela identificação, documentação, preservação e pesquisa de sítios arqueológicos localizados em águas brasileiras. Para isso, a equipe conta com arqueólogos militares formados em universidades civis, que ingressaram na MB por concurso público.

“Nosso trabalho vai muito além da fiscalização. A arqueologia subaquática é uma ciência que envolve tecnologia de ponta, metodologia rigorosa e muito trabalho de campo”, explica o Ajudante da Divisão de Arqueologia Subaquática da DPHDM, Capitão-Tenente (Arqueólogo) Caio Cezar Demilio.

O dia a dia na Marinha

A arqueologia subaquática permite reconstruir parte importante da história marítima do Brasil, por meio da investigação de naufrágios, embarcações militares, estruturas portuárias e outros vestígios preservados no fundo do mar. Esses achados ajudam a lançar luz sobre episódios nem sempre documentados, como batalhas navais, acidentes, rotas comerciais e até ataques durante a Segunda Guerra Mundial.

Na MB, os arqueólogos atuam de forma integrada e multidisciplinar, combinando conhecimentos de arqueologia, história, oceanografia, geotecnologia, mergulho científico e tecnologias digitais, como inteligência artificial e modelagem 3D.

Apesar do avanço tecnológico, o mergulho científico tradicional continua sendo essencial em muitos casos. “É no contato direto com o sítio que conseguimos fazer observações cruciais”, destaca o Capitão-Tenente Demilio, habilitado em Atividade Especial de Mergulho pela Marinha.

A rotina desses profissionais é variada e desafiadora: vai desde a análise de processos e o apoio à fiscalização de pesquisas em águas jurisdicionais até a elaboração de projetos científicos, produção de artigos, apresentações técnicas e missões embarcadas.

“Comecei na Marinha em fevereiro deste ano e já tive a oportunidade de participar de projetos, apoiar o Exército em descobertas arqueológicas e publicar artigos científicos”, conta o arqueólogo da Divisão de Arqueologia Subaquática, Primeiro-Tenente (Arqueólogo) Marcelo Rolim Manfrini. “A DPHDM passou recentemente a ser reconhecida como Instituição de Ciência e Tecnologia (ICT), o que ampliou nossa atuação como pesquisadores.”

Atlas de Naufrágios e túmulos de guerra

Com a recente transformação da DPHDM em Instituição de Ciência e Tecnologia, a Divisão de Arqueologia Subaquática passou a incorporar oficialmente a pesquisa científica à sua missão, com o desenvolvimento de projetos próprios. Um dos principais é o Atlas dos Naufrágios de Interesse Histórico da Costa Brasileira, que já catalogou cerca de 2 mil ocorrências até 1950.

“Esse recorte inclui episódios como o afundamento do Navio-Auxiliar ‘Vital de Oliveira’ por um submarino alemão, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944”, revela o Primeiro-Tenente Manfrini.

Em 2024, a Marinha liderou a operação de localização e imageamento do naufrágio. Utilizando tecnologias como sonares de varredura lateral e multifeixe, Veículos Operados Remotamente (ROVs) e modelagem digital, a equipe confirmou a posição da embarcação. “Foi um marco, tanto técnico quanto simbólico. Mais do que estruturas metálicas no fundo do mar, o local é um espaço de memória, marcado por uma tragédia. Por isso, adotamos protocolos de proteção compatíveis com sua designação como ‘túmulo de guerra’, conforme a Convenção da UNESCO de 2001”, explica o Capitão-Tenente.

Patrimônio como instrumento de soberania

Segundo os arqueólogos da DPHDM, a arqueologia subaquática não se limita à busca por relíquias. Ela contribui diretamente para a soberania marítima, ao mapear, proteger e valorizar o patrimônio cultural presente no mar. Isso inclui naufrágios, âncoras, armamentos, embarcações históricas e estruturas portuárias.

“A história escrita costuma refletir o ponto de vista de quem teve acesso à palavra. A arqueologia, por sua vez, dá voz à materialidade, revelando aspectos da vida cotidiana, dos conflitos e das rotas que não estão nos livros. Ela democratiza a memória e fortalece nossa identidade enquanto nação marítima”, afirma o Primeiro-Tenente.

Para quem sonha em atuar nessa área, eles recomendam formação sólida em arqueologia, domínio de ferramentas digitais e preparo físico para atividades de mergulho. “É um campo fascinante, mas que exige curiosidade, método e muito respeito. Não estamos falando de caçar tesouros, mas de proteger modos de vida e narrativas que resistem no fundo do mar”, resume o Capitão-Tenente Demilio.

Com parcerias firmadas com universidades brasileiras e estrangeiras, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade Federal do Rio Grande, a Universidade de Lisboa e a Marinha de Portugal, a DPHDM projeta um futuro de maior integração científica, expedições mais frequentes e maior produção de conhecimento sobre o passado naval brasileiro.

Imagem de capa: Capitão de Corveta (T) Daniel Gusmão

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