A inteligência artificial (IA) promete impactos significativos na condução de operações militares. Diariamente, os noticiários ressaltam a importância do emprego de novas tecnologias em cenários complexos de conflitos, bem como na defesa virtual (de sistemas) e física (de fronteiras) dos países. Assim, pode-se concluir que a soberania, em todo o mundo, depende — e dependerá cada vez mais — do conhecimento e uso das ferramentas digitais.
Na Marinha do Brasil (MB), diversas iniciativas buscam transformar soluções baseadas em técnicas de IA em tecnologias de fato operacionais, como o treinamento de modelos de imagens (visão computacional), que ampliam a consciência situacional, bem como o aprimoramento da plataforma de dados de treinamento.
Uma das participantes dessas iniciativas, que também apontou demandas atuais para as Forças Armadas, foi a Coordenadora Técnica de Comando e Controle (C2) do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, Capitão de Mar e Guerra (Quadro Técnico) Kelli de Faria Cordeiro. Ela palestrou sobre o tema durante o Fórum Internacional sobre Inteligência Artificial e Defesa Nacional, realizado na Argentina no início do mês de junho. O evento foi idealizado pela Universidade da Defesa Nacional (UNDEF) e pela Fundação TAEDA. Entre os presentes estavam, entre outros, o Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas da Argentina, Brigadeiro General (VGM) Xavier Julián Isaac, e o Reitor da UNDEF, Dr. Julio César Spota.
Impactos no cenário operacional
Segundo a Capitão de Mar e Guerra Kelli, a IA já começa a transformar o ambiente operacional militar. Inicialmente, a consciência situacional tende a ser ampliada, e as informações entre os níveis tático, operacional, estratégico e político devem fluir com maior rapidez e valor agregado.
Os recentes avanços nos modelos de imagens apontam para a integração dos domínios terrestre, marítimo e aeroespacial, além do cibernético — transversal a todos os outros. Já os modelos de linguagem (LLM) podem compor soluções multimodais, em que o que é visto pela máquina pode ser descrito e analisado por ela, indicando, por exemplo, vulnerabilidades do adversário em determinado contexto operacional.
“Um planejamento de longo prazo sobre IA pode apresentar riscos, visto que se trata de uma tecnologia em constante transformação. O que se prevê para dois ou três anos pode estar obsoleto em seis meses ou um ano. Por isso, o ciclo entre o preparo e o emprego de soluções de IA de Defesa precisa ser mais curto que o ciclo de outras tecnologias”, ponderou a Oficial. Ela destacou ainda que a IA está mudando a percepção do que é resolver um problema ou executar uma tarefa. “Gerar resumos e imagens, traduzir textos e fazer previsões já são tarefas realizadas pela IA, de modo que não precisamos mais gastar tempo com isso. Agora, estamos livres para enfrentar problemas complexos que apenas a percepção multidisciplinar e criativa humana é capaz de solucionar. Nas operações militares, o cenário é o mesmo”, afirmou.
Treinamento de modelos
Sobre a preparação de artefatos computacionais, a Oficial explicou que o treinamento deve ocorrer em ambiente interno (on-premise), com dados de Defesa de qualidade, de forma a garantir soberania total sobre essas informações.
Ela comparou a infraestrutura computacional a um novo tipo de armamento militar e os dados de Defesa à munição dessa arma. “O perfil do combatente que irá operar esse novo poder bélico exige alto nível de qualificação técnica. Quem dominar a IA de Defesa terá superioridade de combate diante dos adversários nesses novos tipos de guerra”, destacou.
Atualmente, entretanto, a obtenção de dados de treinamento de qualidade é um dos maiores desafios. Soma-se a isso o alto custo e a escassez de processadores de IA, que apresentam ciclos de obsolescência curtos. “Precisamos ter o pé no chão, avaliar nosso nível de maturidade em dados e infraestrutura, e, a partir daí, planejar projetos conjuntos que otimizem recursos. Com resultados concretos no curto prazo, podemos então avançar em planos de longo prazo”, completou.

Governança de Dados
No campo da gestão e governança, a Capitão de Mar e Guerra Kelli foi categórica: “A governança de dados é uma tarefa que não pode ser delegada nem terceirizada. Os dados de Defesa são sensíveis e, quando agregados e analisados, possuem alto valor.”
Ela ressaltou que a MB está adiantada nesse aspecto, pois implantou a governança de dados corporativos em 2022, por meio da Portaria nº 231/EMA, de 13 de outubro de 2022, que criou a estrutura GovDadosMB. A iniciativa decorreu de discussões multissetoriais e amadurecimento técnico, resultando em uma base que pode evoluir para atender às necessidades específicas do desenvolvimento de soluções de IA de Defesa.
Entre os principais desafios está a anotação de dados, ou seja, a rotulação das informações que servirão de insumo para os algoritmos. “A máquina entende apenas o que informamos. Precisamos dizer que uma imagem corresponde a um navio mercante ou a uma fragata, por exemplo. Esse processo exige grande esforço humano e é custoso”, explicou.
Ela alertou também para a necessidade de anotadores militares no futuro, dada a especificidade e a criticidade dos dados de Defesa. Além da rotulação sintática, outro desafio é a expressividade semântica: “É necessário enriquecer os dados para que a máquina compreenda relações temporais e históricas entre eventos navais, como atracação, desatracação ou fundeio, apoiando operações militares singulares e conjuntas”, afirmou.
A Oficial destacou que esse é um campo de pesquisa científica em aberto, no qual tem atuado em parceria com instituições como o Instituto Militar de Engenharia (IME), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a University of Twente (UT), orientando militares e civis em projetos acadêmicos.
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